
PREDESTINAÇÃO E LIVRE ARBÍTRIO NO JUDAÍSMO
ANTIGO E OS ENSINAMENTOS DE JESUS
Ressaltamos
que havia um debate entre as diversas seitas judaicas a respeito da relação
entre a soberania divina e a responsabilidade do homem. Tal debate implicava em
refletir sobre tais conceitos que, aparentemente, são excludentes, e tentar
conciliá-los. Cada seita judaica estabelecia, em sua doutrina, posições
particulares sobre o tema.
Os
saduceus, no tocante à soberania divina e à responsabilidade humana acreditavam
no pleno arbítrio do homem. Para eles, o destino de cada um era fruto
especificamente das decisões livres, não havendo qualquer agência divina nos
destinos individuais.
Os
essênios, no tocante à soberania divina e à responsabilidade humana,
acreditavam que todas as coisas estavam predestinadas pelo criador, não havendo
qualquer possibilidade de arbítrio para o homem, pois todos os seus caminhos já
estavam traçados na planificação cósmica.
Os
fariseus acreditavam em uma harmonização entre a Soberania Divina e a
responsabilidade humana. Para eles, todas as coisas estavam predestinadas por
Deus, exceto o ato do homem de se voltar para o Criador. Schubert explica a
visão farisaica sobre o tema nos seguintes termos: “Os fariseus afirmam que
alguma coisa, mas não tudo, seja obra do destino, que outras coisas ao invés,
acontecem ou não devido à vontade livre” (1979, p.42). Ressaltamos que tal
compreensão sobre o arbítrio do homem encontra lastro na literatura rabínica
produzida durante a metade do século II d. C., conforme a máxima de Rabi Akiba[2]: “Tudo está previsto e é dado ao homem a
vontade livre” (apud SCHUBERT,
1979, p.42). Sobre a questão Flávio
Josefo assevera:
“Quando eles [os fariseus] dizem que todas as coisas
dependem do destino, eles não lançam fora dos homens a liberdade de agir tal
como pensam; uma vez que a sua noção é de que agradou-se Deus em misturar os
decretos do destino com a vontade do homem, para que o homem possa agir
virtuosamente ou viciosamente” (Antiguidades, XVIII, i, 3).
Concluímos assim, que a posição
farisaica no tocante a questão do arbítrio humano e a soberania divina, era
conciliatória, defendendo certo sinergismo entre o homem e Deus na consecução
dos planos divinos nas vidas individuais. Tal conclusão é reforçada quando
observamos a literatura rabínica, que expressavam os conceitos vigentes do
judaísmo do século I.
Maimônides:
“Tudo pode estar no controle
do ETERNO, exceto o livre arbítrio.”
Yehudá
HaLevi:
“Se as ações humanas são pré-determinadas pelos Céus, quem
serve a Deus não estaria em melhores condições que os que se rebelam contra
Ele, pois ambos estariam de acordo com o propósito para o qual foram criados.(...) Se o conhecimento Divino fosse o fator
causal das ações humanas, os justos teriam seu lugar garantido no Paraíso sem
terem servido a Deus, e os malvados iriam ao Guey-Hinom mesmo sem ter pecado”.
Bereshit
Rabá XXII, 6:
“Se o seu impulso procura incitá-lo a uma conduta leviana,
você deve bani-lo com as palavras da Torá. Não diga que você não tem controle,
pois Eu [Elohim] lhe declarei nas Escrituras: o ‘seu desejo será contra ti, mas
a ti cumpre dominá-lo’ ´(Gn 4:7).”
Abraham Cohen:
“Tudo está nas mãos do Céu [YHWH], exceto o temor ao Céu
[YHWH]’ (Berachot 33b), o que significa que, embora Deus decida o destino do indivíduo,
lhe é feita uma ressalva com respeito ao caráter moral de sua vida”.
Talmud
Bavli, Makot 10b:
“No
caminho no qual o homem decide andar ele é guiado”.
Talmud
Bavli, Yoma 39a:
“Se um homem corrompe a si mesmo um pouco, [Elohim] o
corromperá em muito; se ele se corrompe aqui embaixo, [Elohim] o corromperá
acima; se ele se corrompe neste mundo, [Elohim] o corromperá no mundo vindouro.
Se o homem se consagrar [ao ETERNO] pouco, [Elohim] o consagrará muito; se ele
se consagrar [ao ETERNO] aqui embaixo, [Elohim] o consagrará acima; se ele se
consagrar [ao ETERNO] neste mundo, [Elohim] o consagrará no mundo vindouro”.
Talmud
Bavli, Shabat 104a:
“Se um homem corrompe a si mesmo, aberturas são feitas para
ele; e se ele purifica a si mesmo, ajuda lhe é conferida”.
Jesus,
da mesma maneira que fizeram os fariseus, deu ênfase à importância da vontade e
responsabilidade individual ante a providência ou agência divina. Podemos ver
essa harmonia em duas narrativas dos Evangelhos, nas quais Jesus coloca frente
a frente a soberania divina e a responsabilidade humana (Mt 6:25-34 e 10:29-31).
Para uma melhor compreensão, gostaríamos de transcrever a segunda perícope.
Comparativo texto grego/português-Mateus
10:29-31
29 οὐχὶ δύο στρουθία ἀσσαρίου
πωλεῖται; καὶ ἓν ἐξ αὐτῶν οὐ πεσεῖται ἐπὶ τὴν γῆν ἄνευ τοῦ πατρὸς ὑμῶν. 30
ὑμῶν δὲ καὶ αἱ τρίχες τῆς κεφαλῆς πᾶσαι ἠριθμημέναι εἰσίν. 31 μὴ
οὖν φοβεῖσθε· πολλῶν στρουθίων διαφέρετε ὑμεῖς.
32 Πᾶς οὖν ὅστις ὁμολογήσει ἐν
ἐμοὶ ἔμπροσθεν τῶν ἀνθρώπων, ὁμολογήσω κἀγὼ ἐν αὐτῷ ἔμπροσθεν τοῦ πατρός μου
τοῦ ἐν [τοῖς] οὐρανοῖς· 33 ὅστις δ ᾽ ἂν ἀρνήσηταί με ἔμπροσθεν τῶν
ἀνθρώπων, ἀρνήσομαι κἀγὼ αὐτὸν ἔμπροσθεν τοῦ πατρός μου τοῦ ἐν [τοῖς]
οὐρανοῖς.
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29 Não se vendem dois pardais por um asse? E
nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. 30 E,
quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados.
31 Não temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais.
32 Portanto, todo aquele que me confessar diante dos homens, também
eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus; 33 mas
aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai,
que está nos céus.
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Fontes: Black, M., Martini, C. M., Metzger, B. M., &
Wikgren, A. The Greek New Testament; Bíblia Sagrada versão Almeida Revista e Atualizada
Vejamos
que, nos versos 29 a 30, há uma forte ênfase na soberania divina, mas, nos
versos 32 a 33, a responsabilidade individual entra em cena, na mais cristalina
sintonia com os preceitos farisaicos fomentados pelo Rabi Akiba, já
citado anteriormente: “Tudo está previsto e é dada ao homem a vontade livre” (apud SCHUBERT, 1979, p.42).
Segundo
o discurso de Jesus, muito embora as mínimas coisas estejam sob a égide da
soberania divina, a aceitabilidade do indivíduo diante de Deus está em
confessá-lo diante dos homens. Para Russel Norman Champlin[3]
(1995, p. 370), a expressão “me confessar” (ὁμολογήσει
ἐν ἐμοὶ)
é derivada de uma expressão idiomática aramaica, que quer dizer literalmente
“confessar em mim”. Um termo significativo que indica identificação e união
daquele que confessa com aquele que é reconhecido.
Jesus e os fariseus concordavam em muitas
questões teológicas; havendo, portanto, em certo grau, uma aproximação entre as
teses aventadas e consignadas nos discursos do messias e na tradição do
farisaísmo. Isto revela que ainda que inovador e revolucionário em alguns
aspectos, Jesus não foi um mestre desconectado do pano de fundo ideológico de
seu tempo. Ainda dentro da mesma perspectiva, afirma Skarsaune:
O que significa afinal
de contas, dizer que Jesus tinha características judaicas: que ele deveria ser
situado dentro, e não fora do judaísmo? Aqui as diferentes imagens do Judaísmo
do século primeiro fazem toda a diferença. Se para nós o Judaísmo farisaico for
o Judaísmo tradicional, normativo, que mais tarde despontaria como o Judaísmo
por excelência, tenderíamos igualmente a incluir Jesus nesse judaísmo e fazer
dele um fariseu – embora no caso específico, estivéssemos diante de um fariseu
extremamente original, e de certa forma contestador (2004, p. 137).
Estudiosos como Matthieu Collin e Pierre Lenhardt respondem à questão acerca da pertença religiosa de Jesus,
apontando, também, para uma possivel inclusão no partido dos fariseus. Senão vejamos:
Surge, então, a
primeira pergunta: em qual das correntes judaicas da época poderemos, sem grade
risco, situar Jesus? Para responder a essa primeira questão, temos de levar em
conta, de maneira positiva, o que os evangelhos testemunham. Os adversários de
Jesus, ao longo de sua vida de ensinamentos – caso diferente em sua paixão –
são fariseus. É uma evidência, mas urge dela tirar a conclusão inversa daquela
habitualmente aceita. A oposição dos fariseus é prova visível de que Jesus
formava parte da esfera farisaica (2014, p. 11).
Por
outro lado, essa aproximação não fica clara muitas vezes nos evangelhos, especialmente,
nas narrativas mateanas, onde os fariseus são representados como meros
opositores de Jesus, ou talvez, por não conhecer toda essa tradição circundante
com a qual dialogava, a hermenêutica cristã formatou um Jesus destituído de
judaicidade.
Na
verdade, Jesus dialoga muito de perto com a tradição mais popular do Judaísmo
que lhe era contemporâneo, que é o de matiz farisaico. Diante disto, não podemos
enxergá-lo simplesmente como uma mera ruptura com a tradição do farisaísmo; mas
é nela que ele busca a fonte e supedâneo para muitas de suas ideias. É com essa
tradição que ele vai debater acerca das interpretações da Torá, fazendo
inclusive opções claras por conceitos vigentes e abraçados por determinadas
escolas rabínicas particulares.
Bibliografia:
BREVES
CITAÇÕES ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO SEGUNDO O JUDAÍSMO. Disponível http://www.judaismonazareno.org/news/breves-cita%C3%A7%C3%B5es-acerca-do-livre-arbitrio-segundo-o-judaismo/ Acesso em 20 jul. 16.
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. Vol 1, São
Paulo: Editora Candeia, 1995.
COLLIN, Matthieu;
LENHARDT, Pierre. O Evangelho e a
tradição de Israel. São André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2014.
____________A Torah oral dos fariseus: textos da tradição
de Israel. 2a ed. São Paulo: Paulus, 1997.
JOSEFO, Flávio. História dos hebreus: de Abrão à queda
de Jerusalém, obra completa. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias
de Deus, 2014.
MIRANDA,
Evaristo; MALCA, José. Sábios fariseus: reparar
uma Injustiça. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos hebraicos da época
neotestamentária. São Paulo: Edições Paulinas, 1979.
SKARSAUNE, Oskar. À sombra do Templo: as influências do judaísmo
no cristianismo primitivo. São
Paulo: Editora Vida, 2004.
[1]
Professor do Seminário Teológico
Pentecostal do Nordeste, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade
Católica de Pernambuco, Pós-Graduado em Docência da Filosofia e Sociologia pelo
Instituto Salesiano de Filosofia, Pós-Graduado em Teologia Exegética pelo Seminário
Presbiteriano do Norte (Curso Livre), Bacharel em Teologia pela Universidade
Metodista de São Paulo e Bacharel em Teologia pelo
Seminário Teológico Pentecostal do Nordeste (Curso Livre).
[2]
Rabi Akiba, conhecido também como
Rabi Akiva Ben Iossef, foi um dos principais mestres da Torá, tendo vivido na
segunda metade do primeiro século e na primeira metade do século II, sua
história é cercada de mitos e crenças lendárias (MIRANDA, MALCA, 2001, p. 146).
[3]
Russel Norman Champlin, Ph.D em Novo Testamento e Filosofia pela University
of Utah. Foi professor universitário no Brasil por mais de 30 anos, na
Universidade Estadual de São Paulo – UNESP. Escreveu duas obras bastantes
densas para o estudo da Bíblia: o Antigo e Novo Testamento interpretados
versículo por versículo (EDITORA HAGNOS, 2016).
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