Diversas denominações
evangélicas no Brasil não são adeptas da teologia reformada calvinista no que
diz respeito ao entendimento da doutrina da salvação. A soteriologia de tais
denominações reproduz ou se aproxima da teologia arminiana clássica e da
teologia wesleyana.
O calvinismo é a tradição
teológica da qual o reformador protestante João Calvino (1509-1564) é o
proponente mais famoso. Já o arminianismo clássico
é oriundo do movimento de oposição à perspectiva de salvação dos reformados
calvinistas, que foi iniciado pelo teólogo e pastor Holandês Jacó Armínio
(1569-1609).
A tradição reformada
calvinista e a tradição reformada arminiana clássica possuem diversos pontos em
comum no campo teológico, mas divergem consideravelmente acerca da doutrina da
salvação, chegando nesse aspecto ao nível da incompatibilidade. Neste artigo
daremos ênfase nas diferentes perspectivas de como a graça de Deus age sobre a
vida do perdido pecador.
Arminianos clássicos e
calvinistas concordam no fato de que o pecado afetou todos os aspectos da
personalidade humana, inclinando-nos à rebelião e ao mal, tornando-nos
completamente indispostos a nos submeter a Deus à Sua boa, perfeita e agradável
vontade. Estamos mortos em nossos delitos e pecados (Ef 2.1). Trata-se aqui da
depravação total do homem caído.
As diferenças entre os arminianos
clássicos e wesleyanos, dos pensadores calvinistas, surgem no entendimento de
como Deus trata com os pecadores nessa condição. Do ponto de vista arminiano
clássico:
[...]
Deus estende graça suficiente para todas as pessoas através do Espírito Santo,
para opor-se à influência do pecado e capacitar uma resposta positiva a Deus
(Jo 15.26-27; 16.7-11). A iniciativa aqui é inteiramente da parte de Deus; o
papel do pecador é simplesmente responder em fé e grata obediência (Lc 15; Rm
5.6-8; Ef 2.4-5; Fp 2.12-13). Todavia, os pecadores podem resistir à iniciativa
de Deus, e persistir no pecado e rebelião. Em outras palavras, a graça de Deus
capacita e encoraja uma resposta positiva e salvífica para todas as pessoas,
mas ela não determina uma resposta salvífica para ninguém (At 7.51). Além
disso, uma resposta positiva inicial de fé e obediência não garante a salvação
final de alguém. É possível iniciar um relacionamento genuíno com Deus, mas
então, posteriormente, se afastar Dele, e persistir no mal de sorte que a
pessoa, por fim, se perca (Rm 8.12-13; 11.19-22; Gl 5.21; 6.7-10; Hb 6.1-8; Ap
2.2-7).
Passaremos a observa como
Armínio e Wesley lidaram com a graça preveniente.
A
GRAÇA PREVENIENTE NA TEOLOGIA DE ARMÍNIO
O posicionamento de Armínio
sobre a graça preveniente foi registrado em sua Declaração de Sentimentos:
Eu
atribuo à graça o começo, a continuidade e a consumação de todo bem, e a tal
ponto eu estendo sua influência, que um homem, embora regenerado, de forma
nenhuma pode conceber, desejar, nem fazer qualquer bem, nem resistir a qualquer
tentação do mal, sem esta graça preveniente e estimulante, seguinte e
cooperante. Desta declaração claramente parecerá que, de maneira nenhuma, eu
faço injustiça à graça, atribuindo, como é dito de mim, demais ao
livre-arbítrio do homem. Pois toda a controvérsia se reduz à solução desta
questão, “a graça de Deus é uma certa força irresistível”? Isto é, a
controvérsia não diz respeito àquelas ações ou operações que possam ser
atribuídas à graça, (pois eu reconheço e ensino muitas destas ações ou
operações quanto qualquer um) mas ela diz respeito unicamente ao modo de
operação, se ela é irresistível ou não. Em se tratando dessa questão, creio, de
acordo com as Escrituras, que muitas pessoas resistem ao Espírito Santo e
rejeitam a graça que é oferecida.
Para Armínio, a salvação
pessoal é um ato da iniciativa da graça de Deus, mas que não é irresistível.
Após
a morte de Armínio, quarenta e seis ministros holandeses elaboraram um
documento chamado de “Remonstrância” (protesto), onde reafirmaram os conceitos
de Armínio. Em seu Artigo III, enfatizando a depravação total do homem afirma:
Que o homem não possui por si mesmo graça
salvadora, nem as obras de sua própria vontade, de modo que, em seu estado de
apostasia e pecado para si mesmo e por si mesmo, não pode pensar nada que seja
bom – nada, a saber, que seja verdadeiramente bom, tal como a fé que salva
antes de qualquer outra coisa. Mas que é necessário que, por Deus em Cristo e
através de seu Santo Espírito, seja gerado de novo e renovado em entendimento,
afeições e vontade e em todas as suas faculdades, para que seja capacitado a
entender, pensar, querer e praticar o que é verdadeiramente bom, segundo a
Palavra de Deus [Jo 15.5].
Sobre a possibilidade da
graça preveniente ser resistida, foi escrito no Artigo IV do mesmo documento
que:
Que esta graça de Deus é o começo, a continuação
e o fim de todo o bem; de modo que nem mesmo o homem regenerado pode pensar,
querer ou praticar qualquer bem, nem resistir a qualquer tentação para o mal
sem a graça precedente (ou preveniente) que desperta, assiste e coopera. De modo
que todas as obras boas e todos os movimentos para o bem, que podem ser
concebidos em pensamento, devem ser atribuídos à graça de Deus em Cristo. Mas,
quanto ao modo de operação, a graça não é irresistível, porque está escrito de
muitos que eles resistiram ao Espírito Santo.
O pensamento de Armínio
reverberou ao longo dos anos encontrando guarida em diversos arcabouços
teológicos.
A
GRAÇA PREVENIENTE NA TEOLOGIA DE WESLEY
John Wesley (1703-1791), o
grande teólogo e pregador inglês, pai do metodismo, movimento que influenciou o
surgimento do pentecostalismo clássico, entendia a salvação do homem nos moldes
do arminianismo clássico:
A
graça opera diante de nós para nos atrair em direção à fé, para iniciar sua
obra em nós. Até mesmo a primeira e frágil intuição da convicção do pecado, a
primeira insinuação de nossa necessidade de Deus, é a obra da graça preparadora
e antecedente à beira do nosso desejo, trazendo-nos em tempo de afligirmo-nos
sobre nossas próprias injustiças, desafiando nossas disposições perversas, de
modo que nossas vontades distorcidas gradualmente cessam de resistir ao dom de
Deus.
Sobre o estado de depravação
humana Wesley comenta:
O
homem, por natureza, é repleto de todo o tipo de maldade? É vazio de todo o
bem? É totalmente caído? Sua alma está totalmente corrompida? Ou, para fazer o
teste ao contrário, “toda imaginação dos pensamentos de seu coração [é] só má
continuamente”? Admita isso, e até aqui você é um cristão. Negue isso, e você
ainda é um pagão.
Em seu sermão “O caminho
para o Reino”, diz: Você é corrompido em cada poder, em cada faculdade de sua
alma, por ser corrompido em cada um desses aspectos, toda fundação do seu ser
está fora de curso.
Em outro sermão intitulado “A Falsidade do Coração Humano” enfatiza que: “No
coração de todo filho de homem há um fundo inexaurível de maldade e injustiça,
enraizado de forma tão profunda e firme na alma que nada, a não ser a graça
toda-poderosa, pode curar isso.
Diversos estudiosos da
teologia de John Wesley reafirmaram o seu pensamento soteriológico arminiano
clássico:
Em termos de contribuições
mais modernas, George Croft Cell, no início do século XX, sustentou que Wesley,
na verdade, “planta seus pés igualmente nas pegadas deixadas por Paulo,
Agostinho, Lutero e Calvino”. Willian Cannon, fazendo uma declaração
semelhante, afirma que Wesley, o teólogo arminianista, “percorre todo o caminho
com Calvino, com Lutero e com Agostinho em sua insistência de que o homem é,
por natureza, totalmente destituído de justiça e está sujeito ao julgamento e à
ira de Deus” [...].
As conclusões que se podem
obter, conforme Richard Taylor, é que:
Jacó
Armínio e John Wesley eram totalmente agostinianos nos seguintes aspectos: (a)
a raça humana é universalmente depravada como resultado do pecado de Adão; (b)
a capacidade do homem de querer o bem está tão debilitada que requer a ação da
graça divina para que possa alterar seu curso e ser salvo.
No que diz respeito ao
entendimento sobre a operação da graça na vida do homem perdido e morto em seus
delitos e pecados, assim como Armínio, Wesley diverge de Agostinho e dos
reformistas do século XVI, defendendo que a graça preveniente, fundamentada na
obra salvífica de Jesus Cristo, opera na restauração do livre-arbítrio, de
maneira sobrenatural, pelo Espírito Santo, em todas as pessoas; as quais, à
parte dessa restauração, do ponto de vista soteriológico, não são livres. Dessa
forma, Wesley se afasta tanto do semipelagianismo católico romano que nega a
total depravação humana, quanto do determinismo de Wittenberg e Genebra que
elimina a responsabilidade moral do homem na aceitação ou na rejeição da oferta
de salvação mediante a graça preveniente.
Sobre a ideia de graça
irresistível, Wesley não defende tal realidade no que se refere aos aspectos do
chamado ou oferta para a salvação, mas ao restabelecimento das faculdades
humanas que estabelecem o equilíbrio e responsabilidade individuais:
Mais
uma vez, a graça preveniente não é irresistível no sentido de que a
personalidade é aniquilada nem de que já existe um “eu” responsável viável que
apenas é suprido com as faculdades. Antes, essa graça é necessária, na verdade,
é imprescindível no melhor sentido do termo “antecedência” a fim de produzir no
ser um “eu” responsável, em parte, precisamente pela restauração das
faculdades. Simplificando, o princípio do processo da salvação não requer a
graça cooperante (a essa altura, uma impossibilidade total), mas a graça livre,
a atividade apenas de Deus.
CONCLUSÃO
Torna-se assim evidente, que
a doutrina da graça preveniente de Armínio e Wesley concorda com a concepção
de depravação total e salvação somente pela graça, conforme Lutero e Calvino,
mas discorda no sentido de que Deus predestinou poucos homens para a salvação,
deixando a maior parte da humanidade na condenação do inferno eterno, de que a
graça salvadora é irresistível, e que é direcionada apenas aos eleitos:
A
eleição de Deus é um ato incondicional da graça livre, dada por meio de seu
filho Jesus, antes de o mundo existir. Por meio deste ato, Deus escolheu, antes
da fundação do mundo, aqueles que seriam libertos da escravidão ao pecado e
levados ao arrependimento e à fé salvadora em Jesus.
Sobre a ideia da graça
irresistível na teologia reformada calvinista, lemos:
Isto
significa que a resistência que todos os seres humanos exercem cada dia contra
Deus (Rm 3.10-12, At 7.51) é vencida maravilhosamente, no tempo próprio, pela
graça salvadora de Deus, em favor de rebeldes indignos, os quais ele escolhe
salvar espontaneamente.
Na perspectiva calvinista,
para tornar a graça irresistível, Deus age mudando a nossa vontade, sem
necessariamente agir contra a nossa vontade. Com certeza, um argumento
insustentável à luz da doutrina bíblica da salvação, e da responsabilidade
moral do homem enquanto um ser livre.
O conhecido apelo
evangelístico que diz “dê um passo para Deus que Ele dará dois em sua direção”,
não se sustenta à luz do arminianismo clássico e do pensamente wesleyano. Tal
apelo é norteado pelo arminianismo de cabeça e arminianismo contemporâneo, que são essencialmente
semipelagianos, e que acreditam que o homem não se encontra no estado de
depravação total, podendo de alguma maneira tomar a iniciativa de buscar a Deus
e de conseguir a sua salvação pessoal.
É também infundada e falsa a
acusação calvinista de que o arminianismo clássico defende a ideia de que o
homem após a queda não se tornou totalmente depravado, de que pode escolher o bem
espiritual, e de exercer fé em Deus de maneira a receber o evangelho e assim
tomar posse da salvação para si mesmo.
Toda salvação pessoal é
resultado da iniciativa graciosa de Deus, que abre o entendimento humano para a
verdade do Evangelho, e que afrouxa as rédeas do poder do pecado. Somente a
operação da graça preveniente torna o homem capaz de crer e aceitar o dom gratuito
de Deus, que é a vida eterna em Cristo Jesus (Ef 2.1-10), ou de livremente
rejeitá-lo, tornando-se assim moralmente responsável por tais decisões.
Altair Germano – Pastor, teólogo,
pedagogo, escritor e conferencista. Atualmente é o 1º Vice-Presidente da
Assembleia de Deus em Abreu e Lima-PE (COMADALPE), Vice-Presidente do Conselho
de Educação e Cultura da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil – CGADB.
O texto acima é de autoria do Pr. Altair Germano, publicado inicialmente em http://www.altairgermano.net/